Já se previa o
fim do dia e o começo da noite. Lá se ia ter mais uma noite tranquila em Serra
dos Bois, especificamente na casa de Hermes, lá no Salgado como a gente mais
antiga conhecia. Era na década de 60, quando a caçula da família, Carlinda, já
possuía seus dez anos.
Um homem e
dois comparsas ou companheiros surgiram dos marmeleiros, no caminho que levava
e trazia da casa de tio Manoel Ludugero. Desconfiamos da origem, porque o
caminho era quase particular, só a família de Hermes o usava. Geralmente as
pessoas só chegavam pelos lados de Gravatá ou o de Barra de São Miguel. Sem
falar no caminho que levava ao açude novo.
Mas isso não
vem ao caso. Fato é que naquela noite, Hermes estava viajando, como sempre
fazia, e a casa, neste caso, ficava a cargo de sua esposa, Emília.
Os três homens
se aproximaram, pelo chiqueiro de porcos, passando pelo poleiro das galinhas. O
cão, amarrado num cambão, à sombra do pé de trapiá, latia ferozmente como se
uma onça pintada estivesse se aproximando. Os bichos corriam de um lado para o
outro, escaramuçavam, como se estivessem avinhando chuva. Tudo levava a se crer
o fim do mundo.
As cabras e as
ovelhas corriam de um lado ao outro como se procurassem novo abrigo. Os
cabritos que estavam apartados berravam desesperados em busca de proteção. Os
jumentos procuravam furar a cerca e entrar no roçado de Luiz França, na
tentativa de um lugar tranquilo. Foi se criando um ambiente hostil e assustador
que somente uma boa reza fazia retornar à paz.
Em poucos
segundos eles se aproximaram de nossa casa. Chegaram com um caixote grande; e
descarregaram na porta, pediram agua, como de costume e olhando para Carlina, a caçula disse o homem da mala:
- Dona, sua
filha caçula tem “coisa feita”, despacho, macumba, etc.
Emília, católica
apostólica romana, desconjurou o homens e respondeu:
Em nome de
Jesus vá embora e nunca mais volte, em nome de Deus.
Nossa vó,
Otília, começou a rezar o Credo; as crianças mais velhas ficaram assustadas,
mas com vontade de ver se realmente naquele caixão ou caixa tinha mesmo uma
cobra.
Só a vontade
restou, porque com a reza e a voz firme de Emília o homem e seus comparsas
rumaram em direção às Barrocas, tomando a estrada de Barra de São Miguel.
Passou o susto
e o costume, em nossa casa voltou ao normal e a
noite passou a ser a mais feliz de todas. Nosso lar era muito feliz.
Nossa família, com defeito como todas as outras criava um ambiente propício à
felicidade. E após lavar os pés e comer angu com leite ou cuscuz fazia-se uma
espécie de penitência.
Mamãe
escalava-nos por ordem de idade para nos ensinar a rezar. O interessante era
que a quantidade da reza dependia da idade de cada um.
Os mais novos
rezavam uma oração do Pai Nosso e um Gloria ao Pai. Ao terminar ficava
esperando os outros terminarem o que acabava rezando também.
Aos mais velhos cabia: Um Pai Nosso; uma
Gloria ao Pai, a Salve Rainha; o Credo, Os Dez Mandamentos, além de um Pai
Nosso e uma Ave Maria para todos àqueles que já tivessem morrido em Serra dos
Bois e vizinhança.
As rezas eram
longas e quando se terminava corríamos para as redes para um sono sossegado
esperando o novo amanhecer. Ao acordávamos tomávamos café e cada um tinha a uma
missão a cumprir. A minha era ir ao roçado armado com uma baladeira; um bisaco
cheio de pedras para atirar as rolinhas e vistoriar aos quixós que estavam,
quase sempre, com muitos preás a espera de uma grelha naquele fogão de lenha.
Mesmo
assustador o homem da cobra já foi parte da cultura, assustou em Serra dos Bois,
entretanto, contribuiu para a minha formação intelectual. E fortaleceu minha
memória afetiva sobre a infância e sobre minha terra.
Antonio Martins de Farias é
Advogado e filho de Taquaritinga do Norte