quarta-feira, 16 de abril de 2014

Homem da Cobra




Já se previa o fim do dia e o começo da noite. Lá se ia ter mais uma noite tranquila em Serra dos Bois, especificamente na casa de Hermes, lá no Salgado como a gente mais antiga conhecia. Era na década de 60, quando a caçula da família, Carlinda, já possuía seus dez anos.
Um homem e dois comparsas ou companheiros surgiram dos marmeleiros, no caminho que levava e trazia da casa de tio Manoel Ludugero. Desconfiamos da origem, porque o caminho era quase particular, só a família de Hermes o usava. Geralmente as pessoas só chegavam pelos lados de Gravatá ou o de Barra de São Miguel. Sem falar no caminho que levava ao açude novo.
Mas isso não vem ao caso. Fato é que naquela noite, Hermes estava viajando, como sempre fazia, e a casa, neste caso, ficava a cargo de sua esposa, Emília.
Os três homens se aproximaram, pelo chiqueiro de porcos, passando pelo poleiro das galinhas. O cão, amarrado num cambão, à sombra do pé de trapiá, latia ferozmente como se uma onça pintada estivesse se aproximando. Os bichos corriam de um lado para o outro, escaramuçavam, como se estivessem avinhando chuva. Tudo levava a se crer o fim do mundo.
As cabras e as ovelhas corriam de um lado ao outro como se procurassem novo abrigo. Os cabritos que estavam apartados berravam desesperados em busca de proteção. Os jumentos procuravam furar a cerca e entrar no roçado de Luiz França, na tentativa de um lugar tranquilo. Foi se criando um ambiente hostil e assustador que somente uma boa reza fazia retornar à paz.
Em poucos segundos eles se aproximaram de nossa casa. Chegaram com um caixote grande; e descarregaram na porta, pediram agua, como de costume e olhando para Carlina, a  caçula disse o homem da mala:
- Dona, sua filha caçula tem “coisa feita”, despacho, macumba, etc.
Emília, católica apostólica romana, desconjurou o homens e respondeu:
Em nome de Jesus vá embora e nunca mais volte, em nome de Deus.
Nossa vó, Otília, começou a rezar o Credo; as crianças mais velhas ficaram assustadas, mas com vontade de ver se realmente naquele caixão ou caixa tinha mesmo uma cobra.
Só a vontade restou, porque com a reza e a voz firme de Emília o homem e seus comparsas rumaram em direção às Barrocas, tomando a estrada de Barra de São Miguel.
Passou o susto e o costume, em nossa casa voltou ao normal e a  noite passou a ser a mais feliz de todas. Nosso lar era muito feliz. Nossa família, com defeito como todas as outras criava um ambiente propício à felicidade. E após lavar os pés e comer angu com leite ou cuscuz fazia-se uma espécie de penitência.
Mamãe escalava-nos por ordem de idade para nos ensinar a rezar. O interessante era que a quantidade da reza dependia da idade de cada um.
Os mais novos rezavam uma oração do Pai Nosso e um Gloria ao Pai. Ao terminar ficava esperando os outros terminarem o que acabava rezando também.
 Aos mais velhos cabia: Um Pai Nosso; uma Gloria ao Pai, a Salve Rainha; o Credo, Os Dez Mandamentos, além de um Pai Nosso e uma Ave Maria para todos àqueles que já tivessem morrido em Serra dos Bois e vizinhança.
As rezas eram longas e quando se terminava corríamos para as redes para um sono sossegado esperando o novo amanhecer. Ao acordávamos tomávamos café e cada um tinha a uma missão a cumprir. A minha era ir ao roçado armado com uma baladeira; um bisaco cheio de pedras para atirar as rolinhas e vistoriar aos quixós que estavam, quase sempre, com muitos preás a espera de uma grelha naquele fogão de lenha.
Mesmo assustador o homem da cobra já foi parte da cultura, assustou em Serra dos Bois, entretanto, contribuiu para a minha formação intelectual. E fortaleceu minha memória afetiva sobre a infância e sobre minha terra.



Antonio Martins de Farias é Advogado e filho de Taquaritinga do Norte