segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Vamos guardar as Coisas que não servem mais?



Em 24 de agosto de 2014, ao despertar me dei conta de que há 60 anos morria, na cidade do Rio de Janeiro, o senhor Getúlio Dorneles Vargas. Falecimento que ainda não se chegou a um denominador comum, pois uns defendem que houve suicídio e outros acham que houve assassinato, atribuamos, portanto, à história a tarefa de descobrir e explicar tal fato.
Depois do café, quando olhava as manchetes dos jornais eletrônicos me deparei com alguns depoimentos de pessoas que naquela época eram crianças ou jovens, mesmo assim lembravam-se do fato que mudou a historia da política brasileira.
De Getulio Vargas, depois de tanto tempo, guardamos a Carta Testamento, documento divulgado, cantado e vendido pelos repentistas nas feiras das pequenas cidades do interior do Nordeste. Livros, filmes, documentários e minisséries de TV formam um acervo enorme sobre o Pai dos Pobres, como era carinhosamente chamado em minha terra.
Pois bem, minha memória quando criança em Serra dos Bois, Taquaritinga do Norte, PE, guardou muitos fatos. Fatos ordinários e extraordinários, marcando, grosso modo, nossas vidas. Nossas vidas porque tudo que relatarei fez ou ainda faz parte do dia a dia de todos os moradores de Serra dos Bois e, de certa forma, ainda nos trazem muitas boas lembranças.
É certo, que os acontecimentos de Serra dos Bois não mereceram registros em papel, nem na TV e nem tão pouco em filmes ou em jornais. Mesmo assim não se pode retirar-lhe importância. Têm àqueles fatos tanta importância quanto os demais, afinal fazemos parte do mundo. Este mundo que Deus construiu tão perfeito, que até hoje não temos explicação nem a data certa do início nem do seu fim.
É truísmo afirmar que tudo que influencia nossa vida pode fazer parte da história ou estória individual de cada um. Faz. Como exemplo, temos muitos acontecimentos a relatar: a construção da igreja de nosso lugar; quando o Coronel Lucena nos incentivava, mostrando que todo o sábado deveríamos carregar pedra e fabricar tijolo. Além de comprar telhas para realçar a grandeza do empreendimento. Com trabalho comunitário a igreja foi construída e, hoje, é a referência de nosso lugar.
Serra dos Bois já pode ser considerada uma pequena vila, fato previsto há muitos anos meu tio Lindolfo Ludugero de Farias, quando em visita à Casa de Mãe Zita. E num de seus inesquecíveis diálogos ouvi:
- Antonio, cuida bem deste terreiro que um dia ele será uma cidade.
Achei que não tinha nenhum fundamento o que tio Lindolfo me dizia. Para perceber que eu estava errado, basta vê como é, hoje, minha querida Serra dos Bois.
Assim minha reflexão volta-se à memória afetiva e imaterial de diversos fatos e acontecimentos que presenciávamos ao logo do tempo em Serra dos Bois.
Bastando lembrar-se dos sinais (marcas) com os quais os moradores de Serra dos Bois marcavam ou ferravam seus animais. Antigamente cada família tinha uma marca.  O gado era marcado com a marca do dono e outra do município, que se chamava “Ribeira”. Ao pertencermos à Taquaritinga do Norte, todos os bovinos, equinos carregavam a letra “T”, além da marca do seu respectivo dono.
Já ovinos e caprinos recebiam a marca a qual chamávamos de “sinal”.
As ovelhas e cabras pertencentes à família de Joaquim Lino assinava-se como segue: “Forquilha”, “Mossa”, “Levada” e “Meio Brinco”, além do “Bico de Candeeiro”. Esses eram os mais comuns, embora existam outros conforme a família ou a região.
Sabia-se de quem era o animal pelo sinal que ele trazia em uma de suas pernas, geralmente à direita ou à esquerda. Tinha-se também a marca de seu Oliveira, fazendeiro de Surubim e dono da fazenda Açude Novo, nossa vizinha, que era uma forma de dois triângulos invertidos, bem na anca dos animais.
Assim, entregava-se ao dono o bode que se engraçava por uma cabra alheia; assim como um touro que se apaixonava por uma vaca que não pertencia à fazenda de Aleixo Joaquim o a de Pedro Lino e Sancha.
Os sinais só se complicavam quando um ladrão qualquer resolvia cortar as orelhas dos pobres animais, para confundir os seus verdadeiros donos.
Ladrões famosos, como o tão de Otaviano, de Santa Cruz do Capibaribe. Ele chegou à boca da noite e pediu rancho na casa de Arnóbio. Seu Otaviano, que se dizia mascate, fez-se amigo de todos os moradores de Serra dos Bois. Chegando a vender fiado: brilhantina, espelho e pente, entre outras miudezas, para enfeitar as moças e rapazes. Porém, certa noite de lua cheia, seu Otaviano levou todas as ovelhas de Aleixo Joaquim e de Arnóbio. Chegando a Santa Cruz as vendeu. Foi preso pelo delegado, mesmo negando o crime.
Os chocalhos formaram uma estória à parte. Certos animais carregava um no pescoço. De longe, a gente ouvia aquele som de seus badalos. Com o costume já se sabia de quem era o animal. Era a vaca de Sancha; o jumento de Pedro Lino; as vacas de Adélia; as bestas de tio Manoel Ludugero; ou as cabras dos franças.
Toda esta memória se foi.  Era uma época gostosa de ser vivida. Havia problemas, mas superamos todos, afinal estamos vivos. Triste é saber que se fôssemos procurar onde estão os chocalhos? As camas de couro? As arupemas e os moinhos de moer milho? E os pilões de pisar café? Não estão mais disponíveis estas coisas tão importantes para ajudar aos jovens na construção de suas personalidades e construir um Brasil mais justo e solidário.

Antonio Martins de Farias é Advogado e filho de Taquaritinga do Norte. 

segunda-feira, 21 de julho de 2014

A casa de Mãe Zita




Nos primórdios de vida fui levado por minha vó, Otília, a conhecer Mãe Zita. Chegando a sua casa, entrei pela porta da cozinha, pois a da frende se encontrava fechada. Parece ser um costume: manter a porta da frente das casas fechada. Ao penetrar na cozinha dei de cara com uma velhinha de cabelos brancos. Ela estava sentada num banquinho escolhendo feijão. Quando me viu fez uma festa: parecia que me esperava. Em seguida, pôs-me no colo e fez uma brincadeira que até hoje me lembro: pegou minha mão, contou os dedos assim: dedo de medinho, seu vizinho, maior que todos..., passou pelo braço indo até o “sovaco”. Cadê o queijo que deixei aqui? O rato comeu! Não respondi, pois não sabia qual queijo ela se referia, afinal não tinha ganhado nenhum até aquele momento.
Mãe Zita, após as brincadeiras comigo voltou-se às tarefas que estava fazendo e, logo em seguida, passou a fazer “bico”, que consistia em um trabalho artesanal, de muita importância para a época.
Lembro-me ainda de Mãe Zita andando por dentro de casa. Só depois de algum tempo ela sofreu uma queda e ficou muitos anos acamada, sempre acompanhada de suas filhas: tia Zefinha e tia Lina, que moravam com ela. Importante ressaltar que toda família corria à casa de Mãe Zinta, para curtir sua presença inesquecível e reconquistar energia e vitalidade. A casa  de Mãe Zita uma espécie de oráculo: lá se obtinha a sabedoria que nos faltava. 
Eu também gostava de dormir lá para, pela manhã, comer pinha no roçado de tia Zefinha.
Todas as noites, depois da ceia de angu com leite, às vezes com rapadura, rezávamos o terço. O que demorava era a ladainha. Ou reza cumprida! Muitas vezes não esperava o fim e dormia só para minha vó, com todo carinho me pegar no colo e me levar para dormir na rede.
Quando o dia amanhecia ia com tia Lina para os tanques e pegar as primeiras latas d’água. Ainda com o sol brando ela aproveitava para apanhar um pouco de algodão ou então extrair alguns cachos de mamona para vender e com dinheiro mandar celebrar missa em intenção das almas do Purgatório.
Na casa de Mae Zita, além do banco que me referi acima também tinha um Santuário com muitos santos, inclusive uma imagem de Santa Luzia, que pertencia ao meu avô Ananias Idelfonso de Queiroz, além de outros objetos de valor histórico inquestionável.
Mas tudo isso se perdeu. E também a casa de Mãe Zita, não existe mais. A culpa pela sua destruição é de todos nós. É pena que não se possa preservar a história dos fundadores e desbravadores de Serra dos Bois.


Antonio Martins de Farias é Advogado e filho de Taquaritinga do Norte. 

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Homem da Cobra




Já se previa o fim do dia e o começo da noite. Lá se ia ter mais uma noite tranquila em Serra dos Bois, especificamente na casa de Hermes, lá no Salgado como a gente mais antiga conhecia. Era na década de 60, quando a caçula da família, Carlinda, já possuía seus dez anos.
Um homem e dois comparsas ou companheiros surgiram dos marmeleiros, no caminho que levava e trazia da casa de tio Manoel Ludugero. Desconfiamos da origem, porque o caminho era quase particular, só a família de Hermes o usava. Geralmente as pessoas só chegavam pelos lados de Gravatá ou o de Barra de São Miguel. Sem falar no caminho que levava ao açude novo.
Mas isso não vem ao caso. Fato é que naquela noite, Hermes estava viajando, como sempre fazia, e a casa, neste caso, ficava a cargo de sua esposa, Emília.
Os três homens se aproximaram, pelo chiqueiro de porcos, passando pelo poleiro das galinhas. O cão, amarrado num cambão, à sombra do pé de trapiá, latia ferozmente como se uma onça pintada estivesse se aproximando. Os bichos corriam de um lado para o outro, escaramuçavam, como se estivessem avinhando chuva. Tudo levava a se crer o fim do mundo.
As cabras e as ovelhas corriam de um lado ao outro como se procurassem novo abrigo. Os cabritos que estavam apartados berravam desesperados em busca de proteção. Os jumentos procuravam furar a cerca e entrar no roçado de Luiz França, na tentativa de um lugar tranquilo. Foi se criando um ambiente hostil e assustador que somente uma boa reza fazia retornar à paz.
Em poucos segundos eles se aproximaram de nossa casa. Chegaram com um caixote grande; e descarregaram na porta, pediram agua, como de costume e olhando para Carlina, a  caçula disse o homem da mala:
- Dona, sua filha caçula tem “coisa feita”, despacho, macumba, etc.
Emília, católica apostólica romana, desconjurou o homens e respondeu:
Em nome de Jesus vá embora e nunca mais volte, em nome de Deus.
Nossa vó, Otília, começou a rezar o Credo; as crianças mais velhas ficaram assustadas, mas com vontade de ver se realmente naquele caixão ou caixa tinha mesmo uma cobra.
Só a vontade restou, porque com a reza e a voz firme de Emília o homem e seus comparsas rumaram em direção às Barrocas, tomando a estrada de Barra de São Miguel.
Passou o susto e o costume, em nossa casa voltou ao normal e a  noite passou a ser a mais feliz de todas. Nosso lar era muito feliz. Nossa família, com defeito como todas as outras criava um ambiente propício à felicidade. E após lavar os pés e comer angu com leite ou cuscuz fazia-se uma espécie de penitência.
Mamãe escalava-nos por ordem de idade para nos ensinar a rezar. O interessante era que a quantidade da reza dependia da idade de cada um.
Os mais novos rezavam uma oração do Pai Nosso e um Gloria ao Pai. Ao terminar ficava esperando os outros terminarem o que acabava rezando também.
 Aos mais velhos cabia: Um Pai Nosso; uma Gloria ao Pai, a Salve Rainha; o Credo, Os Dez Mandamentos, além de um Pai Nosso e uma Ave Maria para todos àqueles que já tivessem morrido em Serra dos Bois e vizinhança.
As rezas eram longas e quando se terminava corríamos para as redes para um sono sossegado esperando o novo amanhecer. Ao acordávamos tomávamos café e cada um tinha a uma missão a cumprir. A minha era ir ao roçado armado com uma baladeira; um bisaco cheio de pedras para atirar as rolinhas e vistoriar aos quixós que estavam, quase sempre, com muitos preás a espera de uma grelha naquele fogão de lenha.
Mesmo assustador o homem da cobra já foi parte da cultura, assustou em Serra dos Bois, entretanto, contribuiu para a minha formação intelectual. E fortaleceu minha memória afetiva sobre a infância e sobre minha terra.



Antonio Martins de Farias é Advogado e filho de Taquaritinga do Norte

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Feira de Santa Cruz do Capibaribe: uma escola.














Às cinco horas da manhã, acordávamos e depois de tomarmos um bom café feito pela mamãe nos dirigíamos ao roçado para buscar os animais. Neste momento, já se podia ver o galo de campina erguendo sua poupa escarlate, pousado nos galhos de imburana, em frente de casa, com seu trinado anunciando o nascer de um novo dia.
            Era segunda-feira, e precisávamos ir à feira de Santa Cruz do Capibaribe. Lá, comprávamos e vendíamos. Podiam ser ouvidas as estórias e as notícias do mundo. Era uma festa ir à Santa Cruz do Capibaribe e usufruir da sua feira, sua maior riqueza.
            Saíamos de Serra dos Bois, município de Taquaritinga do Norte. Pelo caminho íamos encontrando outras pessoas de Serra dos Bois, de Pedra Preta, do Jerimum,
Minguaiú, da Fazenda Boa Vista, da Maniçoba, da Baraúna Furada e de outros cantos e recantos da vida campesina. Em fim, quando se chegava à vila do Algodão já não era mais um ajuntamento de pessoas, mas uma espécie procissão. Muita gente: umas pessoas iam a cavalos, outras montadas em jumentos e muitas a pé. Sebastião Honorato, em seu jumento com uma carga de vassouras de macambira, dava uma nova paisagem do Alto de São Pedro.
Rebanho de gado, de ovelhas e de bodes; varas de porcos completavam a paisagem da viagem ou da festa a caminho da feira de Santa Cruz. Jumentos carregados com caçoares cheios de ovos e galinhas para serem vendidos na feira dava uma impressão de que tudo se resumia em dinheiro, em economia. Também burros, com suas cargas de milho, feijão e algodão, tudo a ser vendido, a fim de completar os recursos para as compras do que precisávamos nas bodegas e barracas da feira.
O Ressoar do sino da igreja chamando à missa celebrada por Pe. Zuzinha o povo estava chegando à Rua dos Pacas, onde uma senhora cujo nome era  Romana Pacas, na sua inocência e com sua saúde mental debilitada, xingava os meninos que, as escondidas, a chamavam por um apelido do qual ela não gostava.
A Rua Siqueira Campos se transformava numa espécie de hospedagem. Ali era onde os feirantes deixavam os animais despois de descarregados. E as selas e cangalhas eram guardadas nas casas dos amigos.
Os animais destinados à venda eram levados à feira do gado que ficava ao lado do açougue, às margens do Riacho da Tapera e depois foi transferida para bem longe do centro, mas bem perto da Casa das Mulheres Alegres, que de vez em quando invadiam a feira de gado e disputavam uma garrava de aguardente com os vaqueiros e homens do campo ávidos por momentos de prazer e de satisfação de custo baixo. As mulheres eram feias. Muitas jovens e outras já maduras ou envelhecidas pelo tempo e pelo desprezo que sociedade lhes impingia.
Terminada a compra e venda dos animais, voltava-se ao centro de Santa Cruz, que naquele tempo tinha como referência o Hotel de Dona Maria Duda, (parece que o nove verdadeiro deste hotel era O Sertanejo). Naquele hotel encontrava-se o sertanejo que trazia notícias da enchente do Rio Paraíba, sinalizando que o inverno estava se aproximando para o sofrido cariri pernambucano. Eram noticias orais vindas de Sumé, de Serra Branca, de São João do Cariri e do resto do sertão paraibano e demais regiões. Um verdadeiro centro de informações.
As reuniões, no dito hotel, serviam para a propositura dos acordos políticos. Muitas candidaturas a prefeito, a vereador de Taquaritinga do Norte, de Barra de São Miguel e cidades vizinhas foram decididas ali.
Terminado os momentos de encontros chegava-se à hora de fazer as compras. Neste tempo a feira se localizava na Rua Grande, debaixo do pé de gameleira. Ali também ficava a feira de frutas; de ferro, de enxada, de pás, de foices, de picaretas e todo tipo de ferramenta útil à vida do campo. Sobrava para os armazéns de Pedro Neves, de Braz de Lira e de outras pequenas bodegas a venda de açúcar, café e sabão em barra; além de carne seca. Os jornais que embrulhavam o sabão e as mercadorias acabavam servindo de instrumentos de leituras, muitos aproveitavam para ler uma boa leitura daquelas páginas que permaneciam intactas após sua serventia: papel de embrulho.
Os pães e as ararutas se compravam na padaria de Antonio Saturnino. No açougue se comprava carne de boi, de porco, de pode e  de carneiro e para os mais pobres sobrava  tripa de boi, apenas.
O No Beco do Padre ouvia-se o clamor daqueles que não tinham nada e pediam esmolas. O mesmo sino que ouvíamos à entrada da cidade ainda tocava chamando à missa de padre. Zuzinha. Ao som da velha difusora ouviam-se as recomendações das almas na missa. A lista de finados era grande e não terminava nunca.
Após as compras, quando o sol começava a morrer e com ele também o dia, começava-se a voltar para casa. Novamente, o caminho ficava cheio de gente, de jumentos, burros carregando as cargas ou a feira de cada família. Havia vários cheiros: de carne seca, de bacalhau, de carne fresca e de frutas, como banana, manga, jaca etc. Aquele monte de gente: uns contando o que ouviram, com o devido aumento e as mentiras também. Aos poucos as pessoas iam se separando e marcando novos encontros para próximas segundas-feiras.
Com o passar dos tempos os caminhões, os ônibus e os Toyotas substituíram os animais e a festa do caminho da feira perdeu um pouco de seu encanto, no entanto, continuou a mesma; os mesmos encontros, os mesmos fatos, como por exemplo, a lembrança daquele homem alto e muito magro que vendia alpercatas de couro gritando pela rua e os vendedores de folhetos cordel e de almanaque; além do vendedor de groselha com pão doce.  As pessoas continuaram os encontros, trocando saberes Assim, podemos concluir que a Feira de Santa Cruz do Capibaribe, num certo momento era uma verdadeira escola, uma difusora de saber e de conhecimento.

Antonio Martins de Farias